terça-feira, 6 de maio de 2014

O Coliseu é aqui


Guarujá, maio de 2014, mas pode chamar de Roma, século 1. 

Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, amarrada e arrastada, sangra ao ser surrada com socos e pontapés sobre o asfalto quente do bairro de Morrinhos, mas pode chamar de arena do Coliseu. Os agentes do espancamento são movidos por um boato que circulou na internet (de que Fabiane fazia magia negra), mas pode chamá-los de monstros que não conseguiram sair das trevas medievais. Em volta, está uma plateia sedenta por sangue, estimulada por campanhas midiáticas de justiça com as próprias mãos, mas pode chamar tudo isso de regressão à barbárie.

O linchamento de uma mulher até a morte em pleno século 21 coloca uma questão muito séria a ser discutida por todos nós, brasileiros e humanos: o que somos e o que queremos ser? Homens e mulheres buscando viver em sociedade, com direitos e deveres? Ou feras prontas a destroçar vidas e salivar com o sangue alheio jorrado com violência?

A questão não se limita ao linchamento de Fabiane, mas se estende a outras arenas em que a dor, a vingança e a morte são cultuadas diariamente, num picadeiro que começa dentro da TV e chega à apoteose na plateia que se encontra nos sofás das salas de estar, muitas vezes repercutido na tela de computadores, tablets ou smartphones

Será que queremos consolidar um lugar para se conviver ou viramos reféns do panis et circenses eletrônico, do culto à morte feito por Datena e por Marcelo Rezende, do culto à vingança encabeçado por Rachel Sheherazade, da culto à esculhambação alheia abraçado por Danilo Gentili e por Rafinha Bastos, do culto ao bullying do pessoal do Pânico?

Do pão e circo romano para o circo midiático contemporâneo, mudou a estrutura sócio-político-econômica, mas permanecem práticas horrendas. Não há mais imperador despótico querendo desviar o ódio do povo para o show de horrores do Coliseu, mas continua o show de horrores agora feito para gerar ibope, clicks, lucro e poder de manipulação. A plateia continua praticamente a mesma, em transe e a gritar por mais sangue, agora não mais no Coliseu, mas diante de telas de TVs, capas de jornais e revistas e em seus perfis egocêntricos das mídias sociais.

Muitas postagens e comentários que se leem sobre o linchamento desta mulher são tão ou mais bizarros que o ato em si, porque tentam justificá-los ou "entendê-los" de alguma maneira. Citam a desilusão com a política, com a segurança pública, com a Copa do Mundo, com as mazelas sociais, como se tivéssemos o direito de linchar e matar alguém por algum motivo que incomoda os arredores de nosso próprio umbigo!!! Como se fosse possível "entender" o linchamento, o esgoto do comportamento humano. E como se não houvesse, numa democracia, outros mecanismos de ação que não fosse a barbárie!!!

Evoluímos tanto em direitos para voltar a Roma, ou quem sabe à Idade Média, quando os diferentes eram queimados vivos, em nome de Deus, também com plateia extasiada pela dor alheia. A Revolução Francesa, que destronou déspotas em nome da igualdade, liberdade e fraternidade, tropeça na ditadura do ego e de quem tem mais dinheiro, numa realidade em que vale linchar o negro, o pobre, o viado, a "bruxa da magia negra", porque "na timeline da minha vida só quero gente branca, magra, malhada, de olhos claros e cheirando a Chanel". 

O Estado de Direito esbarra no estado do egoísmo, do imediatismo e daquela ode à competição que virou tendência no ideal de ser "o melhor do mundo". Ora, que mundo? Este que estamos queimando como se fosse um quintal da nossa zona de conforto? 

O inferno são os outros, já disse Sartre. São os diferentes, os "hereges"! Então, vale amarrar os trombadinhas nos postes porque é preciso ir ao shopping sem ser incomodado por esses zumbis que fazem lembrar "The Walking Dead". E não venha com essa história de discutir as origens da violência, porque não há origem de violência dentro dos muros de condomínios fechados ou entre os vidros blindados de carros de luxo. Não venha discutir distribuição de renda ou impostos, tampouco oportunidades ou cotas, muito menos bolsa-esmola! Aos outros, o inferno!

Na era do Coliseu eletrônico, as Fabianes estão na arena, condenadas a uma morte dolorosa, humilhante e espetacular pelas Sheherazades que ocupam o camarote principal. Tudo patrocinado por especuladores, sonegadores e outros "trombadões" que enriquecem, ilegalmente, com a idiotice da plateia.

_______ SE QUISER LER +

# Morre mais uma vítima da escola base e os assassinos, conhecidos como velha mídia, continuam impunes

# Uma noite perdida vendo Danilo Gentili: pênis, troca-troca e sacanagem na TV

# Jornalistas, não há nada a comemorar nos dias atuais. Talvez amanhã


segunda-feira, 5 de maio de 2014

Um velório fantástico!


É bom acordar numa segunda-feira após um feriadão com uma boa notícia. Acabo de ler que o global Fantástico, velho programa-ícone da velha mídia, despencou no ibope a ponto de perder para duas TVs concorrentes, que alguns anos atrás só comiam poeira da Vênus Platinada. Na briga de múmias televisivas, Silvio Santos, do SBT, conseguiu bater o "show da vida", além da Record (segundo matéria do Uol).

A notícia é boa porque monopólio não combina com a verdade em se tratando de mídia. Se já é um absurdo seis famílias dominarem a opinião pública no país como donas de emissoras de TV, rádios e jornais, o fato de existir um canal que manda sozinho na audiência é quase um atestado de óbito dos fatos. Ver a Globo despencar é, portanto, uma chance de haver menos mentiras invadindo a sua sala (não digo minha sala também porque quase não vejo nada além dos Simpsons na TV).

A derrocada do Fantástico, entretanto, tem um sabor especial para mim, pessoalmente. Cresci vendo esse programa e era raro quando eu não ia dormir morrendo de medo aos domingos, após reportagens cheias de catastrofismo sobre vida extraterrestre, vírus e doenças letais que ameaçavam a humanidade, guerras que estavam por vir etc etc etc. O Fantástico sempre foi sensacionalista até no seu slogan ("show da vida") e, quando há show, não há fatos, não há notícia. O programa era um show de horrores, depois virou show de banalidades e finalmente está se tornando um show sem plateia.

O esgotamento do modelo do programa dominical da Globo, porém, não é um caso isolado. Reflete um esgotamento de toda a mídia tradicional (ou, a velha mídia). Depois da internet das conexões, das mídias sociais e do compartilhamento de informações em rede por meio de perfis pessoais, não se sustenta mais o modelo unidirecional (em que um veículo emite informações pretensiosamente oniscientes para um espectador passivo e idiota). 

Na mesma esteira do Fantástico está outro "best seller" global, o Jornal Nacional, que vem tendo históricos recordes negativos. Outras emissoras de TV, jornais e revistas amargam o mesmo fenômeno e não há caminho de volta: a ladeira abaixo será inevitável a quem não aprender dialogar, interagir e se conectar com o público. 

A Globo, assim como Folha, Estado, Veja, entre outros títulos da velha mídia, não conhece o caminho do diálogo com seus espectadores. Esses veículos nasceram e cresceram sustentados em modelos ditatoriais, apoiaram o golpe militar de 1964 e sempre trataram seus leitores e telespectadores como uma massa acrítica passível de manipulações. No momento atual, investem, em coro, nas pautas que tratam o Brasil como o pior dos mundos, e fazem isso financiados por especuladores e políticos interessados na destruição da imagem do país. Na verdade, porém, a grande tragédia ocorre dentro dos suntuosos prédios das empresas de comunicação. Tragédia para elas, sorte do país que existe fora delas.

Feliz do país que não precisa de Fantástico, porque a vida não é show. A velha mídia vive seu epílogo e o velório já acontece em horário nobre, com sepultamento para breve. Plim-plim!

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Morre mais uma vítima da mídia


A velha mídia passa cinicamente despercebida diante da morte de Icushiro Shimada, proprietário da Escola Base, que há 20 anos foi prejulgado e condenado por TVs e jornais como um monstro que abusava sexualmente de crianças. Shimada morreu em decorrência de problemas cardíacos que sofre desde o ano das denúncias (segundo noticiam blogs alternativos), mas a verdadeira causa foi uma metralhadora noticiosa que há 20 anos roubou sua dignidade e sua vida.

O caso Escola Base é um dos maiores escândalos oriundos dos desmandos de uma imprensa dita "independente", que, na verdade, é muitas vezes independente dos fatos, da verdade e da obrigação de respeitar pessoas. O caso começou no Jornal Nacional (sempre a Globo!), em março de 1994, quando os donos da escola eram acusados de molestar crianças sexualmente no horário das aulas. 


Da Globo, o caso se propagou (no velho "modus operandi" que até hoje a velha mídia adota ao "papagaiar" quase sem checar o que o colega-concorrente noticia): foi para outras emissoras como o SBT, para jornais como o Estadão e impressos do grupo Folha, além de publicações regionais por todo o país. O Notícias Populares (que era um tipo Datena impresso na época), do grupo Folha, chegou a manchetar "Kombi era motel na escolinha do sexo". A Folha da Tarde, também da Folha, anunciava que "Perua escolar carregava crianças para a orgia".


A escola era de quatro sócios. Depois das denúncias, foi depredada, assim como a casa de uma das sócias que também era professora. Todos acabaram linchados pela opinião pública, perderam a dignidade, a escola faliu e empobreceram. Ao fim das investigações, todos foram inocentados e o escândalo midiático se revelou uma farsa caluniosa, injuriosa e difamatória. 


Hoje, 20 anos depois, arrastam-se na lenta e inútil justiça brasileira processos de indenização, empurrados ao infinito por recursos sem fim dos advogados da velha mídia. Shimada morre pobre, assim como já morreu sua mulher e seu sócio. Já os grupos de comunicação que assassinaram a dignidade dessas pessoas continuam ricos e impunes. Nenhum (nenhum!) jornalista, nem editor, nem dono de jornal foi punido exemplarmente pelo que foi feito. Estão todos livres, leves e soltos à caça de novas manchetes que rendam ibope.


Pior que tudo isso é que o caso Escola Base não é o único nem o último de uma impressa que se arroga proprietária de uma verdade inventada, reescrita e descontextualizada, criada sob interesses que estão longe do interesse público e da presunção da inocência a que todos têm direito. Vinte anos depois, a velha mídia continua a mesma destruidora de fatos e de honras, com suas páginas e câmeras sedentas por sangue.