quarta-feira, 18 de março de 2015

A Santa Hipocrisia



A hipocrisia é como uma divindade que tem muitos devotos cativos que a veneram tanto em discussões acaloradas como em silêncio latente. A cena de Fernanda Montenegro e Nathália Thimberg se beijando no horário nobre da TV é prova disso. Bastou duas idosas protagonizarem um beijo lésbico para que levantassem os mais fervorosos fiéis da venerável Santa Hipocrisia.

Velhos não podem beijar na boca, ainda mais se for beijo de língua! Ora, desde quando idosos podem viver sua sexualidade? Em todas as mídias, tanto a publicidade como a dramaturgia, sempre mostrou que sexualidade é coisa exclusiva de jovem. Velhos são apenas avós na cadeira de balanço, lendo um livro e à espera da morte. Não podem ter desejos, não podem ter tesão, não podem e pronto!

Se for duas senhoras, então, muito pior! Imagina aquela avozinha fofa da cadeira de balanço tendo um relacionamento com outra avozinha de outra cadeira de balanço! E ainda se darem ao direito de beijar na boca, de viver um relacionamento condenado pelos púlpitos como coisa de Satã, como aberração da besta 666! Não podem e pronto!

Mas e o beijo escandaloso do comendador na mulher traída da novela anterior, pode? E a “boa” da Antarctica, que aparece seminua como um objeto em propagandas que passam durante o dia na telinha, pode? As paniquetes de fio dental se esfregando como carne em açougue, em pleno horário nobre, podem? E o Big Brother Brasil, em que os jovens e sarados transam embaixo da coberta, pode? Podem também os zumbis dilacerando gente do The Walking Dead? Os filmes de Hollywood em que armas, tiros e muita violência são a base do roteiro? Rafinha Bastos e Alexandre Frota defendendo o estupro, estão liberados também? E os pastores pedindo dinheiro em programas cada vez mais frequentes na TV, praticando charlatanismo (que é crime!), podem?

A Santa Hipocrisia opera um milagre poderoso em seus fiéis: a moral seletiva. Não podem duas velhas, não podem dois homens, mas o restante “é assim mesmo”, passa despercebido, sem nenhuma dor na consciência. Se você questiona, eles invocam os céus: “Está no livro sagrado que homem com homem e mulher com mulher não pode!” Aí você argumenta que no mesmo livro está escrito que mulher pode ser escrava do homem, assim como pode ser apedrejada após um estupro, mas eles desconversam. Negam-se à lógica ou ao senso crítico, tal qual se fazia na Inquisição.

A Idade Média ainda vive pulsante em vários nichos da sociedade. E a Santa Hipocrisia segue mais poderosa que qualquer seita, qualquer crença, qualquer divindade.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Mulher: muito além das rosas


Em um desses programas televisivos de auditório que buscam ibope a qualquer custo, o ator Alexandre Frota descreve, em detalhes e aos risos, como estuprou uma mulher. O apresentador do programa, o humorista Rafinha Bastos, se diverte e também ri a cada novo detalhe revelado, completando o circo de horrores que se concretiza em um veículo de comunicação que é, antes de tudo, concessão pública, com dever constitucional de exibir material educativo.

Horas depois, pelas mídias sociais (a nova arena da comunicação de massa), chovem críticas ao episódio. Diante delas, o apresentador responde tentando se esquivar, e diz que se tratava de uma brincadeira. Resolveu o problema? Sendo verídico ou uma brincadeira, seria a descrição de um estupro, que é crime hediondo, algo a ser levado a público como exemplo de humor? Seria engraçado? Seria ético? Seria aceitável? Seria humano?

O episódio, que ocorreu recentemente na TV Bandeirantes, é apenas mais um exemplo do machismo que há muito tempo está impregnado em nossa sociedade, responsável por uma estatística assustadora: a cada dez minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Frota ficou por 24 minutos falando com Rafinha em horário nobre. Então, estatisticamente, enquanto ambos faziam apologia do estupro e falavam sobre outros temas “engraçados”, duas mulheres eram violentadas pelas ruas do país, sem graça nenhuma.

A questão é séria e não é pontual. Não se trata de um caso isolado em uma mídia que não tem limites diante da violência que despeja em nossas salas e diante de uma sociedade que pouco reage a ela. No ano passado, no Big Brother Brasil, da Globo, uma das participantes foi abusada sexualmente com a conivência da emissora, da Justiça, dos espectadores e, portanto, da sociedade como um todo. Ninguém reagiu à altura, portanto ninguém foi responsabilizado.

A consequência disso tudo é uma realidade hostil às mulheres. Uma pesquisa feita recentemente pelo instituto Data Popular aponta que 30% dos jovens brasileiros do sexo masculino consideram que mulheres que usam roupas curtas estão “se oferecendo”, ou seja,  um passaporte para aceitar o estupro. O jornal britânico “Daily Mail” publicou recentemente uma reportagem dizendo que o Brasil é o segundo pior país para uma mulher viajar sozinha.

Diante de tal realidade, vamos comemorar o Dia Internacional da Mulher apenas entregando rosas vermelhas? Ou vamos nos empoderar da responsabilidade de fazer um país (e um mundo!) onde homens e mulheres compartilham da mesma dignidade?

Além das flores que certamente embelezarão o próximo domingo, podemos ajudar a semear, em corações e mentes, um futuro melhor.