Nunca entendi o "sacrifício" da sexta-feira dita santa.
Deixa-se de comer carne para se fazer um banquete de bacalhau muitas vezes regado a vinho com direito a muita gula e descontração à mesa.
Aliás, nunca entendi nem mesmo os sacrifícios.
Nunca entendi o porquê de se sentir culpado por algo acontecido, segundo as escrituras, dois mil anos atrás mas, ao sair à rua, depois de rezar aos pés do Cristo crucificado, fingir que não viu um mendigo jogado na sarjeta, com fome, frio e abandono; fingir que não tem nada a ver com uma sociedade de marginais favelados, famintos miseráveis, escravos de um sistema de produção à serviço de uma minoria.
Sempre me pareceu algo sem nexo essa relação do homem com as tradições. Volta-se ao passado em preces e cerimônias, mas não se consegue enxergar um palmo diante dos próprios olhos sobre as mazelas do presente e os riscos do futuro.
Nunca entendi também a relação dos homens com "carne" e com a vida em geral. Bois, frangos ou peixes, qual a diferença? São seres escravizados e dolorosamente assassinados numa indústria mais cruel que o tribunal de Pilatos, que leva dor e sofrimento aos banquetes dos que se acham fazendo algum tipo de "sacrifício".
Estranha é a forma como homem enxerga os outros e o mundo à sua volta. Sente-se dono de tudo, destrói tudo para seu prazer e sua comodidade e, pior, dotado de uma hipócrita autopiedade, ainda se diz sofrendo e se sacrificando diante de uma mesa farta de bacalhau norueguês onde, desde que esteja a sua família, todas as outras que se danem.
Bicho esquisito esse tal homem. Se diz à imagem e semelhança de um deus criador de tudo e propagador do amor, mas queima as matas, polui o ar e a água, leva espécies diversas à extinção e conduz um planeta inteiro a um futuro sombrio.
Hoje se chora pelo Cristo crucificado, enquanto a humanidade e todas as espécies desta esfera azul estão pregadas na cruz da desigualdade social, da falta de sustentabilidade ambiental, da ganância do capitalismo selvagem, do individualismo que se consolida através dos tempos e, mais que tudo, da hipocrisia de homens e mulheres que lavam as mãos diante da crucificação da vida na Terra.
O homem é, na verdade, a imagem e semelhança do tal Pilatos.
Imagem: Tela "Pilatos lavando as mãos", de Duccio di Buoninsegna
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