Levy Fidelix é o arquétipo do bizarro em um país onde a democracia tem muito a evoluir. Sua única proposta para o país, há décadas, é um pitoresco aerotrem que ele sequer consegue explicar direito.
Apesar disso, Fidelix, com seu bigode agora tingido, conta com espaço e tempo nobres para vomitar idiotices, e recebe dinheiro do fundo partidário para continuar existindo enquanto candidato. Ontem, ele chegou ao seu ápice, num rompante absurdo contra homossexuais: comparou gays a pedófilos, disse que a homossexualidade reduziria a população do Brasil à metade e que "aparelho excretor não reproduz".
À lunática ótica utilitarista do aerocandidato sobre o corpo humano, caberiam algumas colocações. Se o aparelho excretor dos gays só deveria ser usado para excretar, isso deveria valer também para os pais e futuros pais de família que adoram tal órgão das namoradas ou futuras esposas, ainda mais em um país machista em que abundam as bundas femininas nas mais diversas campanhas publicitárias, certo? E sexo só deveria ser feito para reproduzir, afinal, se não vale o desejo como algo "utilitário", nada de transar por prazer, independente de qual órgão esteja em uso! Ah, e nada de sexo oral ou mesmo beijo, afinal a boca deve servir para nos alimentarmos ou, no máximo, para respirarmos em dias de nariz entupido.
Não vale a pena elucubrar mais sobre algo tão tosco, porém cabe uma última pergunta: qual a utilidade de Fidelix em disputas presidenciais? A que ele serve em nossa democracia? O que ele agrega, eleição após eleição, ao debate político? O aparelho excretor, seja utilizado como for pelo seu dono (afinal, cada um que cuide do seu, como quiser), certamente é muito mais útil que Fidelix.
Nos debates presidenciais deste ano está acontecendo algo curioso (como, aliás, está sendo curiosa esta eleição como um todo). Tal qual nos filmes do Batman, onde os vilões geralmente deixam de ser coadjuvantes para brilharem como as verdadeiras estrelas, candidatos chamados de "nanicos", aqueles que as pesquisas relegam ao limbo, estão dando show.
Ontem, no encontro promovido pela CNBB, foi a vez de Luciana Genro, do PSOL, a única a colocar luz na questão da corrupção, que existe desde que as naus de Cabral chegaram por aqui mas que, em toda a eleição, é tratada de forma parcial, hipócrita e distorcida pela mídia e por grande parte dos candidatos.
Lembrando fatos com didática (e seu delicioso sotaque gaúcho), ela desconstruiu a retórica de Aécio Neves, que vociferava contra a "vergonha" que ocorre na Petrobras: "O senhor fala como se no governo do PSDB nunca tivesse havido corrupção, quando na realidade nós sabemos que o PSDB foi precursor do mensalão, com seu correligionário e conterrâneo Eduardo Azeredo. E o PT deu continuidade a essa prática de aparelhamento do Estado" (...) "Também foi pública e notória a corrupção que ocorreu durante o processo de compra da reeleição do mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso" (...) "Também foi público e notório o processo de corrupção nas empresas públicas que foram privatizadas, num processo conhecido como 'privataria tucana'. Então, o senhor, candidato Aécio, falando do PT, é como o sujo falando do mal lavado, porque o senhor é de um partido que tem promovido a corrupção, que tem inclusive se beneficiado dos financiamentos de campanha da mesma forma que o PT da candidata Dilma e do PSB da candidata Marina. As empreiteiras que fizeram o escândalo de corrupção da Petrobras são as mesmas que financiam a sua campanha, financiam a campanha da Dilma, financiam a campanha da Marina" (...) "O senhor é um dos políticos que tem vinculação com esses segmentos mais parasitários da política nacional".
A câmera voltou para Aécio que, nas cordas, tentou rebater, dizendo que a candidata estava atuando como linha auxiliar do PT. E, de novo, foi metralhado pela candidata. "Com todo respeito, 'auxiliar do PT' uma ova, candidato (...) O senhor não tem resposta para debater comigo sobre corrupção, até porque o senhor foi protagonista de um dos últimos escândalos (...) O senhor foi protagonista do escândalo do aeroporto, onde o senhor utilizou o dinheiro público para construir um aeroporto nas fazendas próximas das fazendas de sua família, inclusive entregou as chaves para o seu tio. Então o senhor é tão fanático das privatizações que consegue privatizar um aeroporto e entregar para sua família".
Num canal de pouca audiência e às altas horas da noite, certamente poucos viram ao vivo, mas o assunto hoje está bombando nas mídias sociais, onde a opinião pública realmente age em tempos digitais.
Assista ao trecho:
Não é a primeira vez que Luciana Genro ganha a cena. No debate anterior, do SBT, ela mirou sua metralhadora para Marina Silva, questionando a subserviência da candidata ao pastor Silas Malafaia: "Não durou 24 horas, Marina, e quatro tuítes do Malafaia, teu compromisso de combate à homofobia nas escolas. Não é possível. Os Direitos Humanos e sociais não podem ser restringidos. É preciso defender todos os que precisam de mais direitos". A pergunta de Luciana a Marina começou focando a questão econômica, e também de forma direta: "Tu és a segunda via do PSDB?", inquiriu a gaúcha.
Assista ao trecho:
Outro "nanico" das pesquisas que vem brilhando nos debates é Eduardo Jorge, do PV. Já no primeiro confronto, promovido pela Band, ele driblou a capciosa pergunta de Boris Casoy, que tentava atingir Dilma Rousseff, do PT, não perguntando a ela, mas a ele, sobre a lei de meios. Jorge não cai na armadilha e até a ironizou: "Então, sou obrigado a concordar com a presidente Dilma, respondeu Jorge. "Ficarei com a posição dela", completou, utilizando apenas frações do seu tempo de resposta. Questionado pelo mediador se já tinha acabado, ele deu de ombros e, de forma sui generis, disse: "Acabei".
Assista ao trecho:
Com essa performance nos debates, dois "nanicos" das eleições presidenciais deste ano (quem diria!) estão prestando um grande serviço à democracia, porque desmascaram o marketing político, cada vez mais poderoso na construção de imagens fantasiosas dos candidatos.
Luciana e Jorge, cada um ao seu jeito, chamam o debate para a arena política, onde ele realmente deve acontecer, sem meias palavras ou representações que mais se assemelham às artes cênicas. A forma como suas palavras "viralizam" nas mídias sociais, a nova arena das comunicação de massa, são uma esperança de que a maquiagem, o jogo de cena, as palavras ensaiadas e toda a semiótica milionária da marquetagem podem se esfarelar na era digital.
João Antonio Donati tinha apenas 18 anos. Foi assassinado cruelmente em Goiás, encontrado cheio de hematomas e com sacolas plásticas enfiadas em sua garganta, além de um bilhete revelando a motivação para o crime: "Vamos acabar com essa praga".
A "praga", no caso, ao que tudo indica, é a orientação sexual do garoto -e de 10% da humanidade. Ele era gay e seu azar foi nascer entre pessoas ainda incapazes de entender a característica que manteve nossa espécie viva desde que surgimos na Terra: a diversidade (porque se fôssemos todos iguais, se tivéssemos genes e características iguais já teríamos sido dizimados por um vírus, uma bactéria ou qualquer intempérie; e se tudo no mundo fosse igual sequer haveria mundo).
João Donati não era um diferente entre os "normais", porque simplesmente não há "normais". Todos somos diferentes, temos todos nossa própria natureza e deveríamos todos saber que até podemos não gostar das características dos outros, mas jamais nos é de direito agredir verbal ou fisicamente aquele ou aquela que nos incomoda, porque isso nos reduz ao patamar dos monstros, dos indigentes, das feras irracionais que sequer merecem habitar um mundo tão diverso.
Os algozes de João Donati e de tantos gays como ele, humilhados, espancados, torturados e mortos, estão impunes e ficarão impunes. Estão nos líderes de templos que se autointitulam "casas de Deus", pregando um criador pautado no ódio e na segregação; na hipocrisia dos que conclamam os anjos com práticas das trevas; estão nos burocratas que reproduzem conceitos medievais de família e valores; na educação que se nega a educar para a diferença; na mídia covarde que reforça estereótipos e se vende ao comercial; nos pais e mães que renegam os próprios filhos.
Há, sim, uma praga a ser combatida, mas ela não está entre garotos como João Donati. Ela está entre os que parecem os mais certinhos e capazes de jugar e condenar os "não-certinhos". Essa praga se traveste de "amor ao próximo" para arrancar o dinheiro e a própria humanidade dos humanos, ensinando-os a se agrupar entre fanáticos que odeiam todos os que não são fanáticos como eles.
A praga a ser combatida é o transe que ainda vivemos, em pleno século 21, e que nos torna incapazes de enxergar a nós mesmos. Sócrates, 300 anos antes de Cristo, convidou a humanidade a um desafio que ela ainda não conseguiu realizar: conhecer a si mesma, aceitar sua natureza e, por consequência, respeitar a si e ao outro. Ele foi condenado a beber cicuta e morrer, por "corromper a juventude". Hoje, a sociedade dita "contemporânea" e cheia de direitos individuais, continua a condenar muitos dos que se encorajam a conhecer a si mesmos, se aceitar e se assumir diferentes das regras moralistas dos monstros aclamados como profetas.
"Livre iniciativa" é uma expressão que abunda nos discursos de políticos ligados ao conservadorismo religioso. Pastor Everaldo é um ícone sincero desse nicho fundamentalista: diz que vai entregar quase tudo que é estatal ao particular. Marina Silva, discípula dos (e subserviente aos) twittes de Silas Malafaia, prefere eufemismos, mas quer um Estado se metendo menos. O cômico, para não dizer trágico, é que ao mesmo tempo que defendem uma economia nas mãos de particulares, querem as genitálias e os corações das pessoas nas mãos do Estado.
Vejamos, pois.
O tal pastor já afirmou centenas de vezes que "família é homem e mulher", contrapondo-se à possibilidade de união civil entre pessoas do mesmo sexo, condição aceita hoje no Brasil por uma jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal), mas ainda não em lei (como já existe em muitos países avançados). Ou seja, o Estado "liberal" pregado pelo religioso-político não contempla o direito de cada um escolher com quem quer viver, transar, amar, sonhar e dividir sua vida.
Marina tenta sair pela tangente nesse assunto. Fala que é a favor dos direitos igualitários, mas tropeçou feio ao mudar seu plano de governo, retirando o apoio à união civil em lei e se apegando a eufemismos. No fundo, ela também quer os corações e as genitálias estatizados, afinal, negar-se a evoluir neste tema é também uma posição clara no sentido de manter um sistema que impede as pessoas de serem o que são na plenitude de direitos legais.
Ou seja, Marina, Everaldo e seus pares querem um Estado ausente, por exemplo, em relação ao petróleo que brota do nosso chão, pois isso, para eles, deve ser encarado como problema privado e o governo não pode se meter. Mas ambos querem um Estado muito presente e interferindo no tipo de pessoa que está do outro lado da cama de alguém.
É bizarro, para dizer o mínimo, que quase 300 anos depois da Revolução Francesa, que deu luz ao direito individual e à criação do Estado de Direitos, ainda haja líderes pregando um Estado que define como cada um deve amar, se relacionar, dividir sua vida e ter prazer. E nisso se incluem também o atual governo, do PT, e os governos anteriores, do PSDB. Nenhum teve coragem de mexer nessa questão, justamente pelo temor da reação dos templos e das sacristias, em subserviência ao transe.
Antes de discutir a Petrobras, a Eletrobras ou qualquer outro "bras", precisamos privatizar nossos direitos de amar e ser amados, de viver e conviver sob a égide de uma lei que respeite o ser humano e sua complexidade. É urgente que se privatizem os corações e as genitálias dos brasileiros, tirando do Estado um totalitarismo absurdo sobre a condição humana e permitindo que as pessoas vivam verdadeiramente livres no que tange ao seu foro íntimo e se empoderem do que é seu por natureza. Ou continuaremos rastejando nos ecos da Idade Média.