terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Esse cara, o rei



Esse cara que agora faz careta para um belo prato de massa depois de 30 anos longe dos bifes e, de repente, passa a reconhecer a marca Friboi só de olhar rapidamente para um medalhão numa propaganda milionária, não é um cara incoerente com seu passado.

Esse cara tem história.

Esse cara pouco ligava para o sangue que escorria de estudantes e artistas nos anos de chumbo, quando Chico Buarque tinha coragem de cantar "afasta de mim esse 'cale-se' de vinho tinto de sangue" - e esse cara preferia compor sobre o vermelho do seu carrão, que dispensava espelho para ele se pentear.

Esse cara sabe ser playboy, antes de existirem os reis do camarote.

Esse cara foi eleito rei pela TV oficial da ditadura e, sem precisar criar absolutamente nada de novo, permanece há décadas como atração principal, junto de papai noel e sempre fechando com "Jesus Cristo". Nem a sequência das músicas ele muda, mas ganha dinheiro como se criasse o mais inédito e espetacular dos shows, todo ano.

Esse cara é quase divino.

Esse cara que já cantou que "queria ser civilizado como os animais" em um mundo com baleias cruzando os oceanos e mais verde que o verde do dólar é um cara que entende muito do cultivo do vil metal, seja repetindo suas canções cheias de amor, mulher de óculos, mulher pequena ou posando de modelo para latas de creme de leite ou picanhas maturadas.

Esse cara é brasa, mora!

Esse cara, até meses atrás, travava uma guerra contra tudo e contra todos que escrevessem uma linha sobre sua vida de artista. Processou escritores e biógrafos, censurou trabalhos de pesquisa editorial, influenciou juízes com sua fama, mas topou, de repente, contar suas intimidades gastronômicas depois de negociar a entrada de muitos cifrões na sua conta bancária.

Esse cara quer ficar bem quentinho no inverno - e que tudo mais vai pro inferno.

Esse cara, filho de lady Laura, amigo-irmão do Tremendão e majestade dos românticos melosos, é um produto bem-sucedido da indústria cultural, para quem tanto faz os acordes de "Detalhes" ou os mugidos desesperados dos abatedouros, desde que todos rendam, mais que emoções, o verde mais forte que o verde da vida.

(imagem sxc)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Queda livre


A notícia que mais me assustou esta semana e deixou um amargo na boca difícil de engolir é de um pai que pulou da janela do seu apartamento, no 13º andar, com o filho de apenas seis anos no colo, sequestrando a criança para uma queda livre rumo à morte trágica, insensível aos gritos de "Papai, não!".

O "motivo", segundo as notícias que leio, teria sido uma briga com a esposa, contra quem o pai, um professor (justamente quem deveria ensinar), dera um soco capaz de quebrar seu maxilar. Mas, não! Claro que isso não foi motivo! Não há nenhum motivo que justifique uma atitude monstruosa desse tipo.

Não sou dos que acham que a humanidade está pior que em tempos passados e abomino frases como "este mundo está perdido", relacionando as aberrações humanas às liberdades conquistadas no âmbito do comportamento. Em eras remotas, quando as pessoas eram controladas por rígido comportamento moral e religioso, matava-se cruelmente em nome de Deus, em rituais assustadoramente bizarros.

Cada tempo tem seu fel. E um dos maiores amargos da atualidade certamente é um individualismo frenético e assustador. O conviver vem sendo trocado, em todos os âmbitos, pelo vencer, pelo ultrapassar, pelo superar os próprios limites e sair apressado com vantagem sobre tudo e sobre todos. As palavras de ordem, ditadas na rapidez do "tempo real", são protagonismo, liderança, sucesso, corpo perfeito, olho-por-olho-dente-por-dente, justiça com as próprias mãos, eu, eu, eu, eu, eu, eu e mais ninguém que impeça meu triunfo (nem que esse triunfo seja um mergulho para a morte, desde que o "eu" agarre o prêmio em seus braços, vencendo de alguma forma e deixando em desvantagem quem fica)!!!

Em um tempo dominado pela primeira pessoa do singular, não se aceita dividir, tampouco perder. E quando essa loucura chega ao seu limite, prefere-se a morte ao risco de perder o papel principal, de protagonista.

Precisamos, urgentemente, parar de olhar para o próprio umbigo e lembrar que, por nove meses, esse buraquinho símbolo do nosso ego dependeu de alguém que nos doou seu próprio corpo como abrigo e abdicou de tantos projetos pessoais por nós. E, ao longo da vida, dependeremos de muitos, assim como tantos outros dependem de nós num contexto de convivência, trocas e eterno aprendizado.

Precisamos, também, desacelerar, pois senão entraremos na paranoia de atropelar todos que cruzarem nosso caminho. Porque quando atropelarmos, perdemos a oportunidade de trocar com eles e elas o sabor de viver sem precisar disputar uma corrida frenética que muitas vezes nos leva ao chão e ao silêncio eterno.

Precisamos aprender que a vida não nos pertence, nem a nossa, nem tampouco a das outras pessoas ou seres. Porque, um dia, teremos de devolvê-la e nenhum bônus será dado pelo excesso de orgulho, pela supremacia de ser "o melhor" e de ter ultrapassado todos na corrida maluca da "excelência" material. 

Precisamos aprender a deixar viver, e essa não é uma escolha, mas um dever lógico porque estamos de passagem e nascemos nus e completamente frágeis, iguaizinhos a todo mundo. E capazes de amar.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

É fácil ser idiota


É fácil acender um rojão no meio de uma multidão, apontar para alguém, sem mais nem por que, e gritar palavras de ordem por um Brasil "melhor". Difícil é ser gente, ter atitude de gente, respeitar outros tipos de gente e ser o exemplo da mudança que quer.

É fácil ficar reclamando, em reuniões de botequim, que a corrupção está à beira da morte, mas quando termina o papo, após vários copos de cerveja, sair dirigindo, infringindo a lei, cometendo crime e colocando vidas em risco. Difícil é ter responsabilidade. 

É fácil amarrar trombadinha em poste e defender o linchamento como meio de construir uma sociedade menos violenta, e depois correr atrás do mesmo tipo de trombadinha para comprar erva para um "beck" ou pó para uma carreira antes de ir pra balada, beber e novamente dirigir. Difícil é entender que as ações de todos têm reações que afetam todos.

É fácil esbravejar contra todos os impostos ou transferências de renda, dizer que bom mesmo é ensinar a pescar e sonegar, explorando funcionários e negando-lhes direitos. Difícil é produzir com ética, lucro justo, distribuindo ganhos em vez de querer tudo para si, gerando abismos sociais.

É fácil dizer que todos políticos são corruptos, que não dá para acreditar em ninguém e roubar vaga de deficiente no estacionamento do shopping. Difícil é se responsabilizar pelo próprio voto e exercer a participação que a democracia exige para que aconteça, de fato. 

É fácil gritar que "não vai ter Copa" e socar o amigo nas discussões fanáticas por causa de futebol. Difícil é entender que seria até possível evitar a Copa, se o grito fosse feito quando o país se candidatou a receber o evento (e ninguém deu um pio). 

É fácil quebrar vitrine, praça pública e tombar carros pelas ruas, dizendo que o Brasil precisa melhorar. Difícil é melhorar os próprios atos para que o país como um todo melhore.

É fácil protestar na democracia posando de herói, clamando inclusive pela volta da ditadura como um bebê chorão. Difícil é mostrar o rosto, ter dignidade e ser capaz de andar com as próprias pernas sem precisar agredir ninguém.

É fácil ser black bloc e se achar o máximo sendo um idiota. Difícil é ter a coragem e a causa de um Vladimir Herzog, a inteligência e a ousadia de Chico Buarque, a fé transformadora de um Paulo Evaristo Arns, a consciência planetária de um Chico Mendes (e tantos outros que não tiraram a vida de ninguém por um Brasil melhor, mas colocaram a própria vida em risco por uma causa nobre e coletiva...).

(imagem Fernando Frazão/ABr)

A Folha se faz de Pilatos

Um dos vícios do velho jornalismo praticado na velha mídia (principalmente nos impressos) é o de se achar acima do bem e do mal. O leitor é quase sempre um detalhe, alguém que, quando reclama, é porque "não sabe interpretar" o que os comunicadores-Mor pautam, escrevem e editam. 

Essa arrogância é histórica. Tanto que Claudio Abramo, um dos maiores jornalistas que o Brasil teve, escreveu um texto brilhante (que está no livro "A Regra do Jogo", essencial a quem gosta de jornalismo) comparando seu trabalho de jornalista ao de um marceneiro. Ele diz que não é melhor em absolutamente nada em relação a alguém que faz uma cadeira ou uma mesa, pois do mesmo jeito que a cadeira ou a mesa não pode ficar manca, uma informação não pode ser torta. Mas, Claudio Abramo é exceção numa constelação de deuses da informação.

A resposta da ombudsman da Folha ao meu e-mail (clique aqui para ler se ainda não viu a publicação anterior do Blogna) sobre as "dicas" do jornal para gays não darem pinta nas ruas, é um primor, uma prova de que a autocrítica ainda é raridade dentro das velhas redações. Talvez por isso, elas sucumbem à era digital, onde o debate acontece não nos jornais, mas nas mídias sociais.

Não me contive e repliquei, enviando outro e-mail a ela. Está tudo abaixo.

A resposta de Suzana Singer:

"Caro Marcos, esse quadro traz as táticas adotadas pelos frequentadores da rua Frei Caneca para evitar agressões, a Folha não está recomendando que as pessoas deixem de sair de mãos dadas ou evitem 'dar pinta'. A reportagem é para mostrar como os gays estão sofrendo ataques."

Eu replico:

Cara Suzana, 
Essa resposta me faz lembrar Pilatos.
A Folha ouve meia dúvida de frequentadores da Frei Caneca como se fossem uma estatística do pensam os gays. Primeiro erro crasso, na minha modesta opinião de um mero leitor. Aí, tasca um quadro em destaque intitulado "estratégias de segurança", sem dizer nada, no próprio quadro, que isso é apenas opinião de alguns frequentadores, não representando o que o jornal pensa nem o que os gays, em geral, pensam. Segundo erro crasso (aliás, cabe uma pergunta: quando o jornal destaca algo de uma fonte, não estaria compactuando com ela de alguma forma? Sim, pois é possível ouvir fontes das mais diversas opiniões e usar na edição as que mais interessam para os mais diversos propósitos, oras). O jornal também não coloca senso crítico diante de dicas que são, no mínimo, um festival de preconceitos, apenas reproduz, e agora quer se passar de inocente, dizendo que não tem nada a ver com um tema que destacou em sua edição dominical. Terceiro erro crasso.
Da próxima vez, vocês poderiam escolher gente pela rua que diz que mulher não pode sair de roupa curta para evitar estupro. Aí, vocês fazem um quadro dando dicas de segurança. Certamente, não será responsabilidade da Folha a aula de machismo.
Ora, cara Suzana, isso é tratar o leitor como idiota. É como uma loja vender um produto com defeito e atribuir a culpa apenas à empresa que o fabricou. Os jornalistas precisam descer do pedestal e assumir suas escolhas, tanto na pauta quanto na edição. É preciso ter bom senso e respeito à diversidade na hora de falar de ser humano!!!
Abs,
Marco

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Folha manda os gays ao armário



Minha carta à Suzana Singer, ombudsman da Folha, sobre o fato de o jornal orientar gays a não darem pinta para não ser agredidos nas ruas.

Cara Suzana, boa tarde,

Estou tentando entender as estratégias de segurança publicadas pela Folha para que gays não sejam alvo de violência de homofóbicos nas ruas. 

Se eu entendi direito (e eu li umas dez vezes para acreditar no que estava lendo), o jornal está orientando o público gay a "evitar lugares abertos". Dentro de armários, então, pode? Dentro de casa, desde que trancado no quarto, também? Ou, no máximo, fechado em guetos onde só haja gays, não se misturando com os "normais" nos lugares "normais" em hipótese alguma, isso também pode, né?

O jornal também diz (e isso eu achei um primor!) que os gays precisam "não dar pinta". O que seria "não dar pinta"? Aliás, o que é "dar pinta"? É "desmunhecar"? Ter a "cabeleira do Zezé" que induz ao "será que ele é?"? Ou é simplesmente ser o que é, exercendo um direito que é constitucional? 

Ou seja, apesar de não estarmos no Afeganistão, a Folha defende que os gays e lésbicas pareçam héteros nas ruas, certo? Que os homossexuais representem a figura do macho viril ou da Amélia, autocensurando-se o tempo todo e incorporando, ainda, uma outra personalidade (a que é aceita pelos "normais")? É como se travestir às avessas e não mostrar a "aberração" que são, ok? Ora, mas aberração não são os homofóbicos? Não seriam eles que deveriam temer as regras da sociedade e não deveria um jornal focar seu noticiário na luta contra esses monstros?

Voltando às dicas da Folha, tem mais. O jornal também censura as mãos dadas e o beijo ("evitar andar de mãos dadas e dar beijos em locais públicos"). Poxa, mas agora que rolou beijo (e na boca!) na novela da Globo, depois de tanta luta, não pode nas ruas de uma das cidades mais diversificadas do mundo, onde se realiza a maior parada gay do planeta e no país onde o Supremo Tribunal Federal já considerou o casamento entre pessoas do mesmo sexo válido? Ora, mas que contradição! Enquanto avançamos nas instituições da República, a Folha quer que brinquemos de Idade Média nas ruas? 

Com tudo isso, a Folha está, então, defendendo que um grupo social historicamente vítima de violência e ainda com muitas lutas a travar no sentido da conquista de seu espaço se acovarde? Sim, só pode ser isso! Eu não vejo outra interpretação porque, ao fingirem o que não são e ao agirem como se não fossem o que são, como os gays serão um dia respeitados pelo que são, de fato?

Outra dúvida: a Folha também defende que mulheres palestinas evitem os véus ao saírem nas ruas? Que judeus evitem os quipás? Que negros africanos alisem os cabelos? Que mulheres em geral evitem saias curtas ou roupas justas para não serem alvo dos estupradores? A Folha tem algo contra a diferença? Não quer que as pessoas saboreiem a delícia de ser o que é e lutem para que tenham o espaço que lhe é de direito legal? Quanto recalque de um jornal que se diz moderno e "a serviço do Brasil"!

Uma dúvida histórica, agora. A mesma Folha, que disse num editorial de anos atrás que a ditadura brasileira foi uma "ditabranda", também defenderia, se ainda estivéssemos em um regime militar (credo em cruzes!), que incorporássemos a alienação para não sermos torturados?

E, por fim, o jornal quer que finjamos ser idiotas para acreditar que toda essa baboseira é "estratégia de segurança"?

Não dá mais pra ler!

Sem mais,

Marcos Brogna, gestor de comunicação, prof. universitário/ São Paulo-SP

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O beijo gay


Assisti ao beijo gay da novela global e vi com a melhor das surpresas os lábios de dois atores homens se tocando em uma representação repleta de carinho, afeto e em um contexto de família, os filhos indo para a escola, o pai sendo cuidado na mesma casa, a vida "normal" que também é "normal" entre os diferentes...

Não imaginava que a Globo, que adora exagerar nas cenas eróticas entre héteros, enfim permitisse um beijo gay. Para mim, então, foi, sim, um marco da teledramaturgia, mas que representa muito mais um amadurecimento da própria sociedade brasileira diante do tema diversidade sexual do que uma revolucionária ousadia global.

A Globo teve inúmeras outras chances de exibir um beijo gay. Foi cobrada por isso por muitas entidades representativas deste público, mas a emissora nunca o fez e, se fez agora, é porque sabia ter respaldo de grande parte da plateia. Aliás, mais que isso: em um tempo de mídias sociais e comunicação descentralizada, praticamente não havia escolha, pois ou a emissora se atolava ainda mais no seu conservadorismo retrógrado e hipócrita, ou dava um passo à frente.

A evolução do personagem Félix é um exemplo disso. Ele nasceu vilão na trama. E um vilão repleto das mais sórdidas atitudes para prejudicar pessoas. Apesar disso, o trabalho magistral de Mateus Solano e certamente um esgotamento do público diante da dicotomia entre mocinhos e bandidos fez de Félix um herói às avessas, um tipo de Jack Sparrow que não tem nada de certinho mas muito de cômico. Tanto que a trama não caminhou para um final previsível e comum, com Félix sendo castigado. Em vez disso, a saída foi sua regeneração ética, conquistada através do amor de outro homem.

Foram os telespectadores que quiseram um Félix humano. Nem bom, nem mau, apenas humano, que fala as verdades mesmo quando elas doem, não nutre um olhar fantasioso da vida e carrega traumas, feridas e o monstro que todos temos dentro de nós, sempre à espera de o ativarmos ou de aprendermos a domá-lo em respeito ao próximo e à vida em sociedade.

É claro que religiosos fundamentalistas, reacionários hipócritas e moralistas de plantão continuarão a jogar pedras, acusando a Globo de "transgredir os bons costumes e os ditames de Deus" ao mostrar dois homens que se amam fazendo aquilo que pessoas que se amam fazem (beijarem-se). Ora, o que esperar dos fundamentalistas? Eles não respeitam sequer seus iguais, castrando-os e os obrigando a normas de conduta absurdas em nome de uma divindade cruel e vingativa. Por que respeitariam os diferentes, que em outros tempos já queimaram em praça pública e continuam apedrejando até a morte ou enforcando pelo mundo afora?

Ainda há muito a se evoluir para que homossexuais sejam respeitados como seres humanos. E isso só mudará quando a educação, na família e na escola, ensinar que a diferença é normal, que cada um é livre para ser o que é e todos têm o dever de respeitar a natureza e as escolhas alheias. Entretanto, ver um beijo amoroso entre dois homens numa telinha que em geral só mostra bunda de mulheres-objetos tem um gostinho de "yes, we can".