segunda-feira, 31 de março de 2014

De estupradores e de militares


Assim como não há justificativa para o estuprador, não há nada que justifique o golpe militar no Brasil, que completa 50 anos neste primeiro de abril (e infelizmente não foi uma pegadinha do dia da mentira, mas uma tenebrosa verdade). 

Tão absurdo quanto dizer que um estupro foi feito por causa da roupa curta da estuprada é apontar a ditadura como algo inevitável diante do "fantasma comunista" ou de qualquer outra coisa. A culpa é sempre do estuprador, mesmo que a vítima esteja nua! 

Os militares roubaram nossa liberdade de pensar, agir e escolher; instalaram o exílio, a tortura e a morte; sufocaram partidos políticos, sindicatos, imprensa e todo tipo de pluralidade; acabaram com a educação que ensina o senso crítico; colocaram uma nação de joelhos ao capital internacional, com subserviência e imensa dívida externa fruto de obras superfaturadas e muita corrupção; destruíram a democracia em suas entranhas, a golpes de baionetas. Se fizeram isso para evitar o pior, o que seria pior do que isso?

Os militares nos estupraram. Não há diferença entre eles e um estuprador cruel. Nenhuma diferença! Tal qual o estuprador age sem nenhum respeito pela sua vítima e, pior, sentindo um prazer bizarro em vê-la sofrer, os militares tinham orgasmo ao ouvir os berros de dor de pessoas que torturavam. Eles não apenas calaram um país, mas o fizeram gritar do desespero.

Os hematomas, os traumas e as sequelas do abuso que sofremos estão ainda estampados em muitos rostos, em um país onde falta autoestima e muitos acham que só é bom o que vem de fora; onde a educação é, em sua maioria, capenga; onde a política ainda não superou a busca pelo poder acima de projetos de longo prazo; onde o debate muitas vezes é confundido com briga e onde há até um saudosismo bizarro pela volta do autoritarismo (pois quem não aprende sobre o valor da liberdade muitas vezes a teme, por pura ignorância).

O golpe de 64 nos violou enquanto país e enquanto seres humanos. E continuamos violentados por longas duas décadas. Nossos algozes e seus cúmplices ainda andam a solta por aí, até cultuados nas páginas da mesma velha mídia que os apoiou, na época. Cabe a nós identificar seus rostos e exigir que sejam responsabilizados pelo que fizeram. Mais que tudo, é fundamental, para a recuperação da nossa dignidade, perpetuar a liberdade reconquistada e fazer ecoar de todas as nossas entranhas, com todas as nossas forças: NUNCA MAIS!

quinta-feira, 20 de março de 2014

Pênis, troca-troca e a sacanagem da TV


Joguei fora alguns minutos de minha vida na terça à noite tentando assistir ao "The Noite", de Danilo Gentili, no SBT. O convidado era Jorge Kajuru e a finalidade, clara: gerar polêmica pela polêmica, para dar ibope de qualquer maneira. Essa, aliás, é a regra da era do espetáculo na mídia: chocar.

Kajuru sabe bem servir a esse picadeiro eletrônico. Ele escracha, ofende e fere toda a legislação que define o limite em que a liberdade de expressão se torna calúnia, injúria e difamação. E foi o que ele fez, claro, acompanhado de um dos dois caras que mais sabem confundir ofensa com humor no Brasil (o outro é Rafinha Bastos).

O programa começou (e se estendeu por vários minutos) com uma discussão acalorada sobre o tamanho dos pênis de quem estava no palco, começando pelo dele (Kajuru), passando por Danilo, pelo Roger do Ultrage e teve até enquete com a plateia para comprovar que mulher gosta mesmo é de "p** grande".

Mas não ficou por aí. Kajuru contou sobre um "troca-troca" que fez com um cara (de que ele revelou até o nome) e deu os detalhes mais sórdidos sobre o coito, se dizendo "meio viado", mas fazendo questão de frisar que ele não tem nada contra os gays e as "sapatões". Ainda tentou, por duas vezes, beijar à força a garçonete de Danilo na boca. Tudo gerando delírio no apresentador.

O polemista que se diz corajoso por falar o que pensa sobre tudo e sobre todos teve bastante coragem para falar mal da emissora concorrente, mas prestou-se ao papel de puxa-saco do "patrão", rasgando elogios a Silvio Santos (afinal, ele está na emissora do homem do Baú). Também elogiou o pupilo fascista de Silvio, a Rachel Sheherazade, dizendo que a menina é muito boa. E, como não poderia deixar de ser, entrou na campanha política chamando a presidente da República de "safada", trocando qualquer tipo de argumento pela simples calúnia e despertando acordes orgásticos da guitarra de Roger.

Eu já havia perdido uns 15 minutos da minha vida vendo o programa quando me lembrei que a TV é uma concessão pública que tem como obrigação constitucional ser educativa. E aí percebi onde estava a grande piada de mau gosto, muito maior que todas a protagonizadas por Danilo Gentili. Desliguei e fui dormir, com a certeza de que, hoje, amanhã e sempre, não sairei mais da TV a cabo e dos Simpsons.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Não engrosse o coro dos idiotas!


Para refrescar a memória e derrubar alguns argumentos toscos que voltam a ser usados pelos neorreacionários, saudosistas do regime militar:

Havia menos corrupção no tempo dos militares...
Citemos apenas um dos maiores ícones da ditadura, Paulo Maluf, que consta até da lista da Interpol por suas falcatruas. Superfaturamento de obras, propinas, dinheiro enviado ilegalmente ao exterior estão na ficha de Maluf. Os militares tinham uma vantagem para roubar que os governantes da era democrática não têm: o Ministério Público e a imprensa, por exemplo, não eram livres para denunciar absolutamente nada, então tudo era acobertado.

A economia do país era melhor no regime militar, pois houve o "milagre econômico"...
Ah, é? E o que dizer da dívida externa, que saltou de US$ 3 bilhões em 1964 (ano do golpe) para quase US$ 100 bilhões no final do ciclo militar tornando o Brasil um país completamente dependente da economia norte-americana e sem nenhuma soberania econômica? Nossa dívida, hoje quitada, chegou a ser considerada "impagável" por culpa dos militares e só o que ela custava em juros fez o país deixar de investir em saúde e educação, por exemplo.

O trabalhador vivia melhor na época dos militares...
Outra mentira. A ditadura arrochou salários. Falando em números, entre os anos de 1965 e 74, o salário mínimo, em vez de subir, despencou para míseros 69% do poder aquisitivo que tinha em 1940.

A educação era melhor no tempo dos militares..
Basta um exemplo para derrubar essa ideia sem nenhum fundamento. Paulo Freire, um dos maiores educadores da história do Brasil e até hoje uma referência pedagógica para nós, foi perseguido pelos militares, preso e forçado a deixar o país. Da mesma forma, muitos outros professores foram proibidos de ensinar a pensar e as escolas tinham disciplinas criadas com o único propósito de fazer lavagem cerebral nos alunos em defesa do governo.

Havia mais segurança na época da ditadura...
Não poder pensar diferente do governo e correr o risco de ser preso por subversão, torturado e morto, sem direito a nenhum julgamento, seria algum tipo de segurança? Os militares criaram uma polícia política, cujo único propósito era perseguir quem eles imaginavam ser inimigos do sistema. Muitas pessoas que sequer eram ativistas ou engajadas em alguma ideologia chegaram a ser presas e desapareceram na paranoia da arapongagem.

Nossa ditadura não foi tão violenta...
Nessa até a Folha, que apoiou o golpe como O Globo, o Estadão e outros da velha mídia, embarcou. Uma mentira deslavada. Um bom livro para se entender a violência da nossa ditadura é "Brasil nunca mais", com relatos de torturas de arrepiar a espinha. Só para citar algumas formas usadas pelos militares para tirar informações de quem eles desconfiavam ser contra o governo (poderia ser você, que é contra o governo de hoje), estão choques elétricos dados em genitais, baratas inseridas na vagina de mulheres grávidas, afogamentos, agressões violentas nos ouvidos (chamadas de "telefone") capazes de estourar tímpanos, pau-de-arara, entre muitos outros. Quer ver mais, clique aqui e leia o que a Editora Abril, dona da Veja (baluarte do pensamento reacionário) publicou sobre as torturas. Quer mais? Assista, clicando aqui, ao que a Record levou ao ar sobre torturas feitas em crianças!

Precisamos dar um basta em tudo o que está aí e por isso intervenção militar já!
Ora, tudo o que está aí, bem ou mal, é fruto do que a maioria dos brasileiros escolheu. Quer melhorar? Participe de alguma forma, pois a democracia permite muitas! Quer mudar? Vote em outro grupo político! Não confia em nenhum? Crie o seu próprio grupo e proponha algo que lhe pareça melhor! Só não faça a bobagem de achar que, sem liberdade, alguma coisa possa melhorar, porque isso é deixar de acreditar até em si mesmo, é colar na própria testa o título de idiota que necessita ser comandado por pessoas truculentas. Muita gente lutou dando a própria vida para o direito de você pensar como quiser e agir como quiser. Não seja um mal-agradecido querendo viver no cárcere da ignorância.

(Imagem de Vladimir Herzog, jornalista enforcado na cela, uma das muitas vítimas da ditadura brasileira).

quinta-feira, 6 de março de 2014

Mais Alex e menos machos!


Mais um pai (se é que esta palavra pode ser atribuída a um monstro) espanca e mata o filho para fazê-lo "virar macho". Desta vez, a vítima foi o pequeno e franzino Alex, de apenas 8 anos, que teve o fígado dilacerado por socos "corretivos" do pai machão, no Rio. O motivo? O filho gostava de lavar louça, de dança do ventre e não queria cortar o cabelo. "Coisas de viadinho", para seu algoz. (clique aqui para ler mais)

Não é o primeiro caso, nem será o último em um tempo paradoxal, que mistura liberdades conquistadas com ranços medievais patrocinados pelos neorreacionários que estão nos templos religiosos, na velha mídia que apela a tudo de mais bizarro para sobreviver e dentro das famílias. São muitos os pais machistas que agridem física ou moralmente seus filhos para que virem "machos", e quase sempre isso é acobertado pelas mães.

Em pleno século 21, o machismo ainda é um câncer a ser extirpado do mundo. E isso não acontecerá enquanto a maior vítima dele (a mulher) não se empoderar do combate que lhe cabe, em todos os sentidos. A madrasta de Alex disse à política que o menino desmaiou "de repente", ou seja, ela prestou-se ao papel de cúmplice de um crime bárbaro. Outras tantas mulheres fazem o mesmo e também ensinam seus enteados ou filhos que o certo é ser garanhão e pegador, enquanto às filhas cabe o papel do recato e a obrigação de arrumar a cama do irmãozinho.

Alex era uma criança evoluída, à frente do seu tempo, e pagou com a vida por não seguir ridículos padrões impostos. Ele gostava de cuidar da casa e estava certo, pois isso não é obrigação só de mulher, mas de todos; conseguia enxergar a alegria da dança, independente de gêneros, não importa se balançando ventres ou dando pulinhos ao som do forró (que ele também gostava); não tinha padrões para corte de cabelo, afinal cada um faz o que quiser com o seu; e era afetuoso, algo tão raro em um mundo individual. 

Antes de tudo, entretanto, Alex era uma criança, que deveria ser protegida e amada por seus pais e pela sociedade, entendida em suas manifestações diante da vida e conduzida a uma fase adulta de responsabilidades e liberdade. Em vez disso, foi surrado como um indigno de viver, sofrendo até a morte as dores de um moralismo doentio.

A horrenda morte desse garoto escancara o despreparo da paternidade diante da enorme responsabilidade de gerar uma vida e de educar um ser. Filhos não são propriedades de seus pais e mães e estes não têm o direito de lhes moldar conforme seus rígidos (e cegos) padrões. Simplesmente porque são novas vidas e encarnam a esperança de novos olhares para a solução de velhos problemas.

Quem não está preparado para o novo e para o outro, em todos os sentidos, não deveria fazer filho. O mundo já tem gente demais e recursos naturais de menos! Já quem deseja gerar uma vida e ajudar a construir um novo ser humano, deveria entender que a questão não é brincar de boneca ou de carrinho, lavar ou não a louça, gostar de dançar com o ventre ou com as pernas, ter cabelos longos ou curtos. A questão é ser gente, respeitar gente e ter o direito à felicidade.

Um bebê nasce puro, sem preconceitos, livre, sem dar a mínima para o que é de macho ou de "viadinho". Um ser humano, desde criança, já é dotado da sua natureza, da combinação de genes que definem preferências, gostos e razões. É sua essência - e o mínimo que pais e mães de verdade devem fazer é RESPEITAR!

O mundo precisa de mais crianças como Alex, responsáveis com a casa, afetuosas com o próximo, alegres e capazes de ser diferentes (porque o igual é tão banal). Se você tem um Alex em casa, abrace-o forte, proteja-o e sinta-se feliz por esse privilégio. 

quarta-feira, 5 de março de 2014

As viúvas de Garrastazu


Disfarçado de defesa dos "bons costumes", da "família", das pessoas "de bem" ou simplesmente da liberdade de expressão, surge um movimento muito perigoso na sociedade brasileira. Trata-se de um fenômeno que se sustenta no paradoxo, na incoerência e na aberração, porque se vale da liberdade plena de se expressar (multiplicada nas mídias sociais) para fazer a defesa do que é exatamente o oposto: a ditadura.

Rachel Sheherazade, Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e Lobão são alguns ícones que mais dão pinta nesse bloco das viúvas de Emílio Garrastazu Médici (ou quem sabe de Mussolini). Mas não são apenas eles: há muitos outros mais sutis, que ainda se escondem no armário da intolerância, seguidos por uma multidão de adeptos anônimos que sequer imaginam a gravidade do que andam compartilhando em seus perfis pela rede. 

Os assuntos abordados são diversos. A defesa do linchamento como forma de diminuir a violência, a crítica contra os gays e contra o feminismo por "contrariarem" a tradição da família e a saudade da "disciplina" no tempo dos militares são três exemplos que me ocorrem de memória. Por trás destes (e de outros), está o mais grave: a pregação ao desmoronamento dos mecanismos democráticos de convivência e da aceitação da diferença, princípios da liberdade de todos nós.

O mais irônico (ou, melhor dizendo, bizarro) é que essas pessoas estão usufruindo de meios que não existiriam caso o que elas defendem viesse a acontecer. Sim, pois se o linchamento substituísse as leis, não haveria nenhum parâmetro para diferenciar criminosos de não criminosos; se o modelo de família medieval virasse uma imposição, não existiria apresentadora de telejornal, pois ela estaria em casa cuidando dos filhos e fazendo jantar para o marido; e se a "disciplina" dos militares voltasse, não haveria liberdade para nenhum tipo de ativismo ou para palavras jogadas nas redes sociais, pois no regime militar havia censura, prisão, tortura e exílio de quem questionasse o governo. 

A esquizofrenia desses neorreacionários (junto dos quais há também neonazistas e neofascistas) consiste em usar da liberdade para defender o fim da liberdade. Por trás deles, há forças interessadas em sufocar direitos, mas muitos estão embarcando em compartilhar discursos sem se dar conta do que estão defendendo.

Não há fórmula fácil para a vida em democracia. A pluralidade, a contradição e a convivência com a diferença são pressupostos de uma sociedade livre. A participação é o combustível que a mantém viva. E as leis são seus limites. Quebrar qualquer uma dessas características é por em risco o maior oxigênio da vida: a liberdade.

Se não está contente com o governo, você tem a sorte de, a cada quatro anos, votar em outro ou até formar seu próprio grupo e disputar. Se a violência o coloca em risco, ajude a construir uma sociedade menos desigual, individualista e injusta, pois o garoto amarrado no poste amanhã pode ser seu filho, confundido com um "delinquente". Se a família "estranha" do vizinho o incomoda, cuide da sua como você acha que ela deve ser. E cuidado com discursos prontos e fáceis, pois o cara que mais soube fazer isso na história se chamou Adolf Hitler.

(imagem sxc)

terça-feira, 4 de março de 2014

O Carnaval é maior que a TV



A audiência da Globo na transmissão do Carnaval do Rio este ano é das piores da história e isso não é novidade. A programação da TV despenca como um todo diante do público, numa era em que ela não tem como disputar com as novas mídias, muito mais interativas. 

Mas, não é só isso.

Este ano, além de ter ido ao sambódromo, eu fiz um teste interessante aqui em casa. Baixei o volume da TV e assisti por um tempo, depois ergui novamente. Percebi que, exceto pelo samba-enredo, é mais agradável ver sem ouvir as obviedades e baboseiras que se falam por jornalistas e "especialistas" no assunto. Um exemplo: quando caía granizo, no primeiro dia do desfile em São Paulo, chegou-se a dizer que a chuva "não atrapalhava". Claro que não, para os comentaristas que viam tudo de um confortável estúdio, sambando diante do vidro que os separava da vida lá fora.

Mas há uma questão cronológica do Carnaval que a TV não consegue captar. As escolas têm um começo, um meio e um fim na sua passagem, todos repletos de uma magia que só se sente quando está presente. Para quem vê no sambódromo, isso é muito claro: as imagens e o som evoluem, a abertura e as primeiras alas vão levando ao clímax da passagem da bateria, e depois vêm novas alas que preparam para o fechamento em grande estilo. A TV atropela esse "ritual", tornando tudo repetitivo, chato e repleto de "análises" que beiram a surrealidade.

Faz tempo que a Globo enquadrou o Carnaval do Rio e de São Paulo em sua telinha. Monopolizou a festa como um produto seu, obrigando as ligas de escolas de samba a seguir o horário de sua grade, desde os desfiles até a apuração. Isso funcionou para a emissora em tempos analógicos e enquanto a grande maioria dos brasileiros tinha um poder aquisitivo tão baixo que os tornava reféns da TV. Mas, a realidade mudou, tanto nas novas conexões quanto novas possibilidades.

A magia carnavalesca não cabe num tubo de TV, tampouco nos interesses de uma empresa como a Globo, historicamente avessa ao diálogo e amiga da ditadura. Essa magia brota do povo, tem som de povo, cheiro de povo e alegria de povo. É democrática e inclusiva, tornando os "súditos" da vida real reis e rainhas da passarela.

Se vale uma dica, no próximo ano, desligue a TV e corra pro sambódromo. Você poderá, como eu, sentir um arrepio gostoso de ser brasileiro.