Disfarçado de defesa dos "bons costumes", da "família", das pessoas "de bem" ou simplesmente da liberdade de expressão, surge um movimento muito perigoso na sociedade brasileira. Trata-se de um fenômeno que se sustenta no paradoxo, na incoerência e na aberração, porque se vale da liberdade plena de se expressar (multiplicada nas mídias sociais) para fazer a defesa do que é exatamente o oposto: a ditadura.
Rachel Sheherazade, Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e Lobão são alguns ícones que mais dão pinta nesse bloco das viúvas de Emílio Garrastazu Médici (ou quem sabe de Mussolini). Mas não são apenas eles: há muitos outros mais sutis, que ainda se escondem no armário da intolerância, seguidos por uma multidão de adeptos anônimos que sequer imaginam a gravidade do que andam compartilhando em seus perfis pela rede.
Os assuntos abordados são diversos. A defesa do linchamento como forma de diminuir a violência, a crítica contra os gays e contra o feminismo por "contrariarem" a tradição da família e a saudade da "disciplina" no tempo dos militares são três exemplos que me ocorrem de memória. Por trás destes (e de outros), está o mais grave: a pregação ao desmoronamento dos mecanismos democráticos de convivência e da aceitação da diferença, princípios da liberdade de todos nós.
O mais irônico (ou, melhor dizendo, bizarro) é que essas pessoas estão usufruindo de meios que não existiriam caso o que elas defendem viesse a acontecer. Sim, pois se o linchamento substituísse as leis, não haveria nenhum parâmetro para diferenciar criminosos de não criminosos; se o modelo de família medieval virasse uma imposição, não existiria apresentadora de telejornal, pois ela estaria em casa cuidando dos filhos e fazendo jantar para o marido; e se a "disciplina" dos militares voltasse, não haveria liberdade para nenhum tipo de ativismo ou para palavras jogadas nas redes sociais, pois no regime militar havia censura, prisão, tortura e exílio de quem questionasse o governo.
A esquizofrenia desses neorreacionários (junto dos quais há também neonazistas e neofascistas) consiste em usar da liberdade para defender o fim da liberdade. Por trás deles, há forças interessadas em sufocar direitos, mas muitos estão embarcando em compartilhar discursos sem se dar conta do que estão defendendo.
Não há fórmula fácil para a vida em democracia. A pluralidade, a contradição e a convivência com a diferença são pressupostos de uma sociedade livre. A participação é o combustível que a mantém viva. E as leis são seus limites. Quebrar qualquer uma dessas características é por em risco o maior oxigênio da vida: a liberdade.
Se não está contente com o governo, você tem a sorte de, a cada quatro anos, votar em outro ou até formar seu próprio grupo e disputar. Se a violência o coloca em risco, ajude a construir uma sociedade menos desigual, individualista e injusta, pois o garoto amarrado no poste amanhã pode ser seu filho, confundido com um "delinquente". Se a família "estranha" do vizinho o incomoda, cuide da sua como você acha que ela deve ser. E cuidado com discursos prontos e fáceis, pois o cara que mais soube fazer isso na história se chamou Adolf Hitler.
(imagem sxc)
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