quarta-feira, 24 de julho de 2013

Francisco, corações e almas

Marcelo Camargo/ABr
O papa é simples e tem carisma. Trocou a pompa alegórica de Bento XVI pela sobriedade e deixou de lado os ditames de conduta para nos lembrar que os pobres existem e todos nós temos a ver com isso em um mundo tão desigual e individualista. Nas primeiras palavras ao desembarcar no Rio, adotou um tom mais de humano que de "santo padre", falou em pedir licença para entrar no coração dos brasileiros. 

Tudo isso comove e é digno de apreço, mas o desafio do papa como um líder mundial, com poder moral sobre corações e mentes, é bem maior.

Francisco comanda uma igreja que poucas vezes pediu licença para entrar na vida das pessoas. Pelo contrário, chegou a atear fogo nos que ousaram sair da sua rígida conduta dogmática. E continua queimando, não mais com a fogueira mas com segregação, os que buscam entender que a humanidade é mais complexa do que a leitura radical de escrituras milenares. Aconteceu aqui no Brasil: um padre foi excomungado este ano por enxergar a diversidade sexual como aceitável no contexto católico.

A igreja de que Francisco se tornou líder ainda não vê a mulher como digna dos mesmos direitos dos homens em todo o expediente de sua estrutura, relega o sexo a um ato pecaminoso exceto quando feito para procriação (condenando o uso de preservativos na luta contra a Aids, por exemplo), impõe celibato aos seus sacerdotes, entende a união entre duas pessoas como algo indissolúvel, repele a homossexualidade como aberração (apesar de ela existir desde que o mundo é mundo na natureza - não apenas na espécie humana). Tudo isso se contrapõe à realidade da vida e, mais ainda, às aberturas da era contemporânea.

Exemplo dessa contradição está, inclusive, nos próprios jovens católicos, ao encontro dos quais o papa veio. Pesquisa Ibope divulgada há alguns dias revela que os católicos com idade entre 16 e 24 anos pensam e agem diferente da Igreja: 72% são a favor do fim do celibato para padres, 62% querem mulheres sendo ordenadas (mesmo percentual dos que são contra uma mulher ser presa por ter feito um aborto), 56% apoiam a união de pessoas do mesmo sexo e 90% querem punição mais rigorosa para religiosos pedófilos. São maiorias pra lá de desafiadoras para a Santa Sé.

Ou seja, se Francisco quer mesmo fazer a diferença em corações do século XXI, terá de tirar a sua igreja da Idade Média. E isso não significa abdicar de valores atemporais, como a solidariedade, tão rara numa época de extrema competição, e o amor (lembremos que "amai-vos" é a expressão maior de Cristo, ironicamente tão pouco praticada pelas próprias religiões cristãs). Em sua homilia desta quarta-feira, em Aparecida, o papa tocou nesses valores, ao dizer que o dinheiro é um ídolo passageiro, deixando claro um diferencial positivo do catolicismo diante do neopentecostalismo, que cultua a riqueza material como divina e quase coloca códigos de barras nas almas.


Vivemos uma era de liberdades conquistadas ao longo de milênios, edificada com conhecimento científico e lutas, que nenhuma igreja tem o direito de (nem poder para) tirar. Isso, entretanto, não torna a humanidade avessa à busca da transcendência, até porque o capitalismo, que não sobrevive sem o consumismo e a desigualdade, tem esvaziado o espaço dos sonhos e das razões maiores de se viver. 

Eis um contexto oportuno para a reflexão do papa e de outros líderes religiosos: não é só entrar nos corações, nem sequestrá-los com promessas milagrosas, ditames de conduta moralista ou boletos bancários para dízimos. A alma humana é maior que tudo isso. Como diz Mário Quintana, "A alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe."

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