segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A roda viva que mata a roseira


Cresci vendo a TV Cultura. Como nunca gostei da Xuxa, programas como Rá-Tim-Bum e Mundo da Lua marcaram minha infância. Já adolescente, passei a devorar as entrevistas do Roda Vida, meu jornal preferido era o 60 Minutos, adorava o Metrópolis da Lorena Calabria e do Cadão Volpado, o Opinião Nacional do Heródoto Barbeiro, o Conversa Afiada do Paulo Henrique Amorim...

Eu era daqueles que acreditavam que a Cultura simbolizava uma sementinha de BBC no Brasil, uma TV pública que não tinha cara de estatal, livre tanto do cabresto do poder econômico (dos anunciantes que mandam na TV comercial, condicionando tudo a ibope) quanto de governos ou partidos. A Cultura não bajulava políticos, mantendo uma linha editorial independente do Palácio dos Bandeirantes, que a sustenta.

A emissora também era um berço de talentos. Marcelo Tas começou lá, tanto com seu inesquecível jargão "Alô, classe!" quanto vivendo o irreverente repórter Ernesto Varela. Serginho Groisman também "nasceu" na Cultura, onde tinha liberdade para fazer um programa de qualidade para jovens, não o clipping global que é hoje.

Tudo isso, entretanto, é passado, porque a semente de BBC não germinou na Fundação Padre Anchieta. Dos anos 90 para cá, a Cultura foi sendo sucateada, sem dinheiro para novas produções, tendo de se humilhar por "apoios culturais" irrisórios e reduzindo sua programação a reprises dos bons tempos. Pior: de pública, a emissora virou estatal, um braço do governo estadual contaminado pela política-partidária.

Essa guinada ficou clara quando, em 2010, Heródoto Barbeiro foi demitido, coincidentemente logo após questionar o então governador e candidato à presidência José Serra sobre o preço dos pedágios no Estado. Heródoto, que era o âncora do Roda Viva, fez o papel do bom jornalista, incisivo em sua pergunta, mas a reação agressiva (típica, aliás) de Serra já deixava claro que sua atitude não ficaria barata. Naquele momento, a que se pode assistir no vídeo abaixo, batia-se um prego definitivo no caixão da independência da emissora.

Hoje, o mesmo Roda Viva que já teve grandes jornalistas no comando e edições memoráveis caminha para se resumir a um palanque de alinhamento com o governo paulista, em detrimento da pluralidade e independência. Na efervescência dos protestos pelas ruas do país, por exemplo, os entrevistados foram, na sequência, FHC e Serra, oniscientes a analisar o contexto brasileiro. Para piorar, o Roda Viva agora passa para o comando de Augusto Nunes, blogueiro da Veja a serviço do odioso partidarismo da revista e que, recentemente, foi processado por chamar um leitor de "perfeito idiota" (leia aqui). 

De respeitada alternativa aos entulhos da TV comercial brasileira, a Cultura se tornou uma estatal partidarizada e insignificante. A situação do seu principal programa, aliás, me faz lembrar a sensacional música de Chico Buarque, que compara a censura do período militar a uma "roda viva", que ceifa a liberdade e arranca o que está em desenvolvimento: "Faz tempo que a gente cultiva a mais linda roseira que há, mas eis que chega a roda viva e carrega a roseira pra lá".


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